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Mas se a moqueca capixaba é conhecida justamente pela soma desses fatores, o que dizer quando durante o preparo são usados itens que não fazem parte da receita original? Uma pesquisa apontou que restaurantes da Grande Vitória estão deixando a tradição de lado, incluindo na receita temperos industrializados, além de cozinhar o alimento em panelas de alumínio. Estariam eles vendendo peixada?
O estudo foi realizado por estudantes do curso de Nutrição da Faculdade Salesiana de Vitória. Foram visitados dez restaurantes especializados de Vitória, Vila Velha e Serra. Estabelecimentos incluídos na chamada Rota do Sol e da Moqueca, criada pelo governo do Estado. Em três estabelecimentos, a panela de alumínio foi usada e só no momento em que ia para a mesa o prato passava para uma panela de barro. E essa prática pode ser ainda mais utilizada. "Só estamos usando a de barro hoje porque é um dia de movimento fraco. Quando está cheio, temos que fazer na panela de alumínio, porque ela cozinha mais rápido", disse aos estudantes o gerente de um dos restaurantes.
Caldo de galinha. Em dois estabelecimentos, a pesquisa constatou o impensável, quando se trata de moqueca capixaba: foram usados temperos industrializados em pó e em tablete nos sabores peixe e galinha. Mas os problemas não param por aí. Provavelmente com o objetivo de aumentar a margem de lucro, em seis restaurantes o óleo de soja foi usado no lugar de azeite de oliva.
"Se o objetivo é fazer moqueca capixaba, a receita tradicional tem que ser seguida. Se acontece qualquer mudança nos ingredientes ou no modo de preparo, o prato deve levar outro nome", afirma a professora de Cozinha Nacional do curso de Gastronomia da UVV, Núbia Salles. Ela ressalta que até o uso da panela de alumínio altera o sabor do prato.
Historiadores consultados por A GAZETA concordam. Para os especialistas, os consumidores estão "levando gato por lebre" e deveriam acionar o Procon. A superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Carol Abreu, informou que a moqueca capixaba tem valor simbólico e cultural e é associada à panela de barro, registrada em um decreto de proteção aos bens imateriais.
Nomes não podem ser revelados
O estudo feito por estudantes do curso de Nutrição da Faculdade Salesiana de Vitória foi realizado entre agosto e setembro deste ano. O objetivo era fazer um registro fotográfico da preparação da moqueca e a elaboração da ficha técnica do prato. Entre outras informações, os estudantes tinham a intenção de identificar quantas calorias estão presentes em uma porção de moqueca capixaba e na casquinha de siri. Em todos os restaurantes, a casquinha foi preparada em panela de alumínio. Os nomes dos restaurantes não podem ser divulgados por causa de um termo de compromisso assinado entre os estabelecimentos e a faculdade.
Historiadores apontam falta de respeito com cultura capixaba
A informação de que restaurantes da Grande Vitória não estão seguindo o modo de preparo tradicional da moqueca deixou historiadores e antropólogos indignados. Para eles, o uso de temperos industrializados e de panela de alumínio provoca uma descaracterização do prato, uma falta de respeito à cultura do Espírito Santo.
"O gosto pode até variar um pouco, dependendo da mão do cozinheiro, mas existe uma composição básica e um modo de preparo que têm de ser seguidos. Estão desvirtuando um prato conhecido como símbolo do Espírito Santo e vendendo gato por lebre", diz o historiador e antropólogo Adilson Vilaça.
Para ele, mesmo o uso de ingredientes naturais, mas que não estão na receita original, como cheiro verde e água, é um erro.
O presidente da Comissão Espírito Santense de Folclore, Eliomar Mazzoco, concorda. "A moqueca capixaba representa uma tradição. Quem procura um restaurante para comer esse prato quer também experimentar essa tradição. Por isso qualquer mudança na receita é uma falta de respeito com nossa cultura e com o consumidor", afirma Mazzoco. Ele ressalta que o Procon e as secretarias de Turismo deveriam fiscalizar os estabelecimentos.
Moqueca com sabor original
Cuidado. O Restaurante Moqueca e Cia, que fica na Avenida Dante Michelini, em Vitória, é um exemplo de estabelecimento que se preocupa em manter a tradição no preparo da moqueca capixaba. "O segredo do sabor único da moqueca capixaba está na panela de barro", diz a chef Rosângela Dambrósio, especialista em frutos do mar. Nos dias de maior movimento, a casa chega a servir mais de 100 moquecas só no horário de almoço.
Sindbares diz que qualidade é garantida
"Não acredito que casas tradicionais e especializadas estejam descaracterizando a moqueca capixaba. Não houve critérios na escolha dos estabelecimentos." A afirmação é do presidente do Sindicato dos Restaurantes, Bares e Similares do Estado do Espírito Santo (Sindbares), Wilson Calil.
Calil afirma que o número de restaurantes visitados é insignificante quando comparado à quantidade de casas que servem moqueca na Grande Vitória. "Uma amostragem de dez casas é muito pequena. Além disso, o erro de três ou quatro estabelecimentos não pode sugerir que cerca de 3 mil estejam na mesma situação", avalia.
O representante do Sindbares garante que os restaurantes especializados seguem o procedimento correto no preparo do moqueca. "O uso da panela de alumínio para preparar o prato mais rapidamente pode acontecer em casas não-especializadas, despreparadas porque têm fogões com poucas bocas. Nos melhores restaurantes, há fogões próprios para atender com rapidez, sem abrir mão da qualidade", afirma Calil.
O presidente do Sindbares recomenda que as pessoas que desejem comer a legítima moqueca capixaba tenham o cuidado de procurar restaurantes tradicionais e especializados em frutos do mar.
Gato por lebre
Veja os ingredientes que não fazem parte da receita original da moqueca capixaba e que foram usados pelos dez restaurantes visitados na pesquisa
Ingrediente Restaurantes
Óleo de soja 6
Receita da verdadeira MOQUECA CAPIXABA
4 porções
Modo de preparo
Limpe bem o peixe, corte-o em postas e deixe-o em uma vasilha com sal e suco de um limão. Conserve assim pelo menos por uma hora. Separe a cabeça para o pirão
Utilizando uma panela de barro, coloque: azeite, cebola, coentro (tudo bem picadinho), tomate e urucum. Em seguida, arrume as postas do peixe uma do lado da outra, sem sobrepor. Não adicione água ou sal. Cozinhe em fogo brando e, quando abrir fervura, coloque umas poucas gotas de limão. Não espere ferver, caso contrário o peixe endurece. Tampe. Espere uns dez minutos e experimente o sal. Cubra com coentro picado
Fontes: Núbia Salles, professora de Cozinha Nacional do curso de Gastronomia da UVV e Adilson Vilaça, historiador e antropólogo
Sabor é igual na panela de alumínio?
Ninguém duvida que o uso da panela de barro para fazer uma legítima moqueca capixaba é importante por uma questão cultural. Mas uma pergunta não quer calar: será que a panela de alumínio altera o sabor do prato? Especialistas em gastronomia têm opiniões diferentes.
A professora de Cozinha Nacional do curso de Gastronomia da UVV, Núbia Salles, garante que sim. "O alumínio solta partículas, e o gosto da moqueca pode ficar um pouco metalizado. Quem é acostumado a comer moqueca e é exigente com o sabor percebe a diferença. Além disso, um turista que tiver provado o prato pela primeira vez pode sair do nosso Estado dizendo que a iguaria não é tão boa como ouviu falar", afirma.
Já o professor de Gastronomia da Faculdade Novo Milênio e proprietário do Restaurante Papaguth, Júlio Lemos, não acredita que haja alteração perceptível do sabor. "Não fica ruim. Dificilmente alguém nota um gosto diferente. Mas a panela de alumínio não é a ideal para fazer moqueca porque é mais fina", diz.
Quanto à mudança nos ingredientes, ele concorda que há alteração no sabor. "Até mesmo o uso de óleo de soja no lugar de azeite muda o sabor. Imagine temperos industrializados. É errado."
Núbia vai além nas críticas. "Os temperos podem estar sendo usados por ignorância do cozinheiro ou até para disfarçar o sabor de um peixe de má qualidade", avalia.
Inadequada. No meio da polêmica, uma especialista dá a sentença. "A panela de alumínio não deveria ser usada, pois solta resíduos de metal que alteram, mesmo que sutilmente, o sabor dos alimentos. Sem contar a possibilidade de haver impurezas que serão eliminadas com o aquecimento. Nesse sentido, a de barro é melhor", diz a professora de Engenharia de Alimentos da UCL, Fabíola Loyola Provedel Toscano.
Mais calorias com ingredientes alterados
Como foram usados ingredientes diferentes nos restaurantes pesquisados, o levantamento identificou uma variação nas calorias por porção. Uma porção individual pode conter de 400 a 700 calorias, dependendo, por exemplo, do uso de óleo ou azeite. O tempo médio de preparo ficou entre 12 e 20 minutos, e o custo médio do prato para o restaurante fica entre R$ 16,10 e R$ 24,44, também em função dos ingredientes utilizados.
Lei protege panela de barro
A não-utilização da panela de barro no preparo da moqueca capixaba é vista como uma falta de respeito à tradição do Estado. Não há uma lei que obrigue os restaurantes a usar o objeto, mas há lei reconhecendo sua importância cultural: em 2002, a panela de barro foi o primeiro bem do Brasil registrado no livro dos Saberes, um dos quatro tipos de bens imateriais que podem ser protegidos pela lei que resguarda o patrimônio histórico, artístico e cultural do país.
A superintendente do Iphan no Estado, Carol Abreu, ressalta que a lei protege o modo de preparo da panela de barro exatamente da forma como é feita pelas paneleiras de Goiabeiras, em Vitória.
"É uma técnica indígena milenar, em que há uma forma específica de retirar o barro, modelar manualmente e queimar a céu aberto", explica. Ela lembra que a moqueca capixaba tem valor simbólico e cultural associado à panela de barro.
Desvalorização da cultura
Revolta entre as paneleiras. A presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, Diomara Alvarenga Siqueira, se ressente do não-uso da panela por alguns restaurantes. "Há quem não valorize a cultura e o nosso trabalho. Mas acredito que são minoria. A panela de barro deixa qualquer comida mais gostosa e saudável", afirma.
Fonte: Daniela Souza - Gazeta
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